Artigo para o Jornal “Sudoeste”
Título: Pequenas grandes pescas
Autor: João J. Castro (Biólogo marinho, Pólo de Sines da Universidade de Évora)
Texto: É normal falar-se de pequena pesca quando se trata da que é feita a bordo de pequenas embarcações, geralmente de convés aberto e equipadas com motores pouco potentes. Tendo estas embarcações um pequeno alcance, e sendo-lhes permitido, por lei, afastar-se pouco da costa, este tipo de pesca é, também, chamado local.
Ora, pretendo falar-vos aqui de uma pesca ainda mais pequena, pois raramente são nela usadas embarcações, e ainda mais local, pois nem sequer se afasta da costa, apesar de continuar a ser marinha. Trata-se da que é feita com os pés assentes em terra e, na maioria das vezes, na zona das marés de litorais rochosos. Neste caso, são geralmente escolhidos os dias de marés ou de águas vivas, em que a amplitude da maré é maior. Não se levam para esta pesca redes de emalhar nem de cerco, e raramente se utilizam aparelhos de anzol ou covos. Geralmente, leva-se um bicheiro, um xalavar e um balde, mas também se pode levar uma cana com linha e anzol, uma arrelhada, uma faca ou, simplesmente, um saco, para guardar o que se consegue apanhar com as mãos.
E o que se apanha são polvos, percebes, peixes, caranguejos, ouriços, lapas, mexilhões, caramujos e burriés. Destas presas, umas também se capturam na tal pequena pesca, ou pesca local. Continuando este jogo das diferenças, a pesca ainda mais pequena e ainda mais local, chamemos-lhe, por exemplo, a micro-pesca, não é objecto de qualquer controlo legal, exceptuando casos pontuais, como certas áreas protegidas ou portuárias. Isto é, pode-se micro-pescar em qualquer lado, da maneira que se quiser e quando assim for, e o que se apanha pode ser vendido em qualquer sítio e a qualquer preço, sem qualquer imposto ou obrigação fiscal. As diferenças são óbvias, tendo em conta que a tal pequena pesca faz parte da pesca dita comercial, que é sujeita a diversos regulamentos, tanto nas operações de captura, como nas de compra e venda.
Até aqui, tudo estaria bem, se não fossemos falar com as pessoas que fazem estas pescas. Se o fizermos, o coro de descontentamentos é geral, o que varia é a explicação: “cada vez se pesca menos e com menores tamanhos”, “não se sabe onde isto vai parar”, “isto não tem futuro para ninguém”, etc.. Quanto às explicações: “a culpa é dessas redes todas postas mesmo à borda d’água”, “se não houvesse esgotos e navios a poluir...”, “estas leis feitas em gabinetes...”, “colhe-se e não se semeia”, “cada vez anda mais gente à maré”, “apanham-se polvos que quase não se vêem”, etc...
E é este o panorama actual, mesmo na pesca comercial, sujeita a inúmeros regulamentos, supostamente feitos com base em inúmeros estudos científicos, e dependente de inúmeras decisões políticas, que têm pesado inúmeros factores biológicos, sociais e económicos. Se é assim nesta regulamentada e controlada actividade, não nos podemos admirar com o que acontece com a tal micro-pesca, para as quais estas preocupações têm as costas voltadas.
O problema é que as costas estão tão voltadas, que nem sequer se sabe o que está a acontecer, para além das queixas dos intervenientes. Com efeito, não existem quaisquer estatísticas desta micro-pesca, nem sequer se tem uma ideia da sua importância sócio-económica.
Movidos por esta ausência de informação, iniciámos em 1994 um programa de estudo sobre estas actividades de exploração de recursos vivos da zona das marés. Numa análise dos primeiros resultados, obtidos durante dois anos consecutivos, pudemos constatar que estas actividades são intensas na costa alentejana, e que a sua importância relativa é comparável à da referida pesca comercial, podendo mesmo ser maior. Com efeito, obtivemos valores globais médios de 3 a 14 toneladas por quilómetro quadrado, e por ano, de peixe e marisco capturado na zona de marés do litoral rochoso alentejano. Com base no pescado descarregado nas lotas alentejanas entre 1990 e 1997, a respectiva taxa de exploração da pesca comercial é de cerca de 5.5 toneladas por quilómetro quadrado e por ano.
Esta micro-pesca é, afinal, uma pequena grande pesca, que deveria ser alvo de maior atenção, tendo em conta a sua importância. Apesar de ser tradicional e tipicamente desenvolvida como passatempo ou recreação, contribui para a subsistência de muitas pessoas residentes nesta região, tanto em termos de consumo alimentar directo, como de complemento económico.
Não havendo qualquer controlo e gestão destas actividades, e tendo em conta o aparente decréscimo das capturas e o aumento do esforço de exploração, é urgente a aplicação de medidas de conservação que permitam a utilização sustentável destes recursos. Estas medidas deverão envolver a aplicação e revisão da legislação existente, no âmbito de um programa global de conservação e gestão integrada da zona costeira.
Neste enquadramento, a criação de reservas marinhas pode dar um importante contributo, não só recuperando populações exploradas ou perturbadas mas, também, desenvolvendo o turismo, a recreação, a ciência e a educação, e constituindo uma referência para a implementação de um programa mais vasto de conservação do meio marinho.
Na nossa costa, a existência do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, com uma faixa marinha de dois quilómetros em toda a sua extensão, é uma oportunidade que não deveria ser desperdiçada para a implementação de tais programas de conservação.
De qualquer modo, está nas mãos de todos nós a protecção do meio marinho, não só para que se possa continuar a pescar mariscos e peixes mas, também, para que a beleza e a riqueza deste meio possam continuar a ser apreciadas por muitos e muitos anos.